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Exu: que guerra foi essa?

A capa do livro de Adriana Aires Alencar/Reprodução.

Durante muito tempo, o Nordeste ganhou destaque na imprensa nacional em função da guerra sem trégua entre as famílias Alencar e Sampaio, no município de Exu, no sertão de Pernambuco.

O estopim desse conflito sertanejo, que atravessou mais de três décadas, foi uma morte acidental ocorrida em 10 de abril de 1949, após um tiroteio que vitimou o coronel Romão Sampaio Filho e Cincinato de Alencar Sete, ex-prefeito do município.

Daí para frente, muita sede de vingança e muito sangue enlutaram as duas famílias.

Contaram-se 48 assassinatos, em sua esmagadora maioria contra inocentes, praticados dos mais diferentes e terríveis modos – em Exu, Recife, São Luís, Rio de Janeiro e em outros lugares –, além de atentados.

Essa tragédia sertaneja é contada em prosa e verso através da literatura de cordel, de reportagens, documentários de TV, teses acadêmicas e músicas.

O que se divulgava, até então, era que a sucessão de mortes violentas se alimentava da disputa cega pelo poder local.

Amor impossível

A história ganha novas cores, agora, através da narrativa da médica Adriana Aires Alencar, descendente direta das duas famílias. A autora perdeu o pai nessa guerra.

No livro “Amor sem tréguas”, ela apresenta a versão de quem viveu, desde a infância, todo o drama por dentro.

O livro foi publicado pela editora Provisual, de Recife, em 2022.

O fio condutor da narrativa é o amor (proibido) entre seus pais – um Alencar (Zito) e uma Sampaio (Teresinha), oriundos, portanto, das famílias rivais.

O texto que corre ao longo das 237 páginas da obra é ilustrado com a reprodução de documentos oficiais, recortes de jornais, depoimentos e fotografias.

Atentado

Adriana Alencar conta, por exemplo, como viu um atentado contra o pai quando tinha apenas 10 anos de idade.

Após a troca de tiros, da qual ele saiu gravemente ferido, a menina concluiu que a coisa era mais séria do que poderia supor sua cabecinha infantil.

As armas em casa, bem como as conversas quase cochichadas sobre política e brigas, eram assuntos comuns de seu dia a dia.

Quando o atentando foi praticado, em 1972, Zito Alencar morava no município de Sapé, no interior da Paraíba.

Ele foi residir em outro Estado porque em Exu estava marcado para morrer, pois estivera na cena do crime de 1949.

Para sobreviver e criar a família que constituiu, viu-se obrigado a ir embora e até a mudar de nome, no novo lugar que escolheu para morar.

Dom Avelar e Luiz Gonzaga

Muita gente importante tentou acabar com a guerra entre os Alencar e os Sampaio.

Em 1972, firmou-se um Acordo de Paz entre os patriarcas das famílias, no município de Garanhuns.

O pacto teve como testemunha o cardeal-primaz do Brasil, dom Avelar Brandão Vilela.

À época, ele era arcebispo de Salvador, mas tinha exercido a função de bispo de Petrolina.

Nessa condição, conhecia o conflito de perto e já tinha ido a Exu tentar pacificar as famílias.

Animado com o novo clima, cantor Luiz Gonzaga, amigo de Zito Alencar, gravou no ano seguinte a música Cantarino: “Volto agora à minha terra/Volto agora ao meu torrão/Trago paz pra minha gente/Trago amor no coração” (…)

Mais sangue

Mas o acordo selado durou muito pouco. Ainda no começo de 1973, o então prefeito de Exu, Raimundo Ayres de Alencar, foi assassinado com três tiros de revólver na praça principal da cidade.

A escalada de violência não acabou aí. Vinte e três anos depois de ter fugido da cidade, Zito Alencar voltou para Exu e elegeu-se prefeito, porém, não tirou o mandato: foi assassinado por balas traiçoeiras no meio da rua, em maio de 1978, quando tinha 52 anos.

O crime abalou Exu e repercutiu no mundo inteiro. A missa de corpo presente foi celebrada pelo padre João Câncio, que fundou com Luiz Gonzaga a Missa do Vaqueiro. Ele era amigo da família.

Adriana narra como aquele crime destroçou sua família e como sua mãe enfrentou a vida e cuidou dos seis filhos órfãos de pai.

Quando o pai foi morto, a autora tinha apenas 16 anos. Sua vida sofreu uma reviravolta.

Ela teve que estudar em vários lugares, até se formar em medicina, na Universidade Federal de Pernambuco, em 1981.

Intervenção federal

Com o recrudescimento da violência em Exu, Dom Avelar passou a defender intervenção federal no município.

Em 1979, Luiz Gonzaga encontrou-se com o então vice-presidente da República, Aureliano Chaves, e fez um dramático apelo para que buscasse a paz para sua terra.

O apelo foi atendido. O Exército foi mobilizado e, por fim, o próprio Governo do Estado assumiu as rédeas da situação.

Em 1982, o Rei do Baião gravou Prece para um Exu novo, composta em coautoria com Gonzaguinha: “Seu moço/É tão triste a história/Que já nem sei do começo/Não gosto de sua lembrança/E quando lembro estremeço/Eu era ainda criança/E tudo já estava no avesso/Amor demais deu em ódio/Tomou as contas de um terço/Pai Nosso, nos salve Maria/Não deixe esses filhos sem berço” (…).

O último crime

O último crime dessa guerra, conforme o relato de Adriana Alencar, ocorreu em 1981.

O conflito só terminou de fato quando o Estado, enfim, se fez presente de forma mais decisiva no caso, a partir do início da década de 1980.

Pelo menos é o que conclui o pesquisador Grimaldo Carneiro Zachariadhes, em Diálogo, modernização e conflito – uma biografia do cardeal dom Avelar Brandão Vilela.

Trata-se de sua tese de doutorado defendida na Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2018 e citada por Adriana Alencar.

A autora traz, na página 196, o pensamento do pesquisador Frederico Pernambucano de Mello sobre o esmaecimento dessas rixas:

“Essas lutas de família morrem por exaustão. Não é um candeeiro que alguém chega e apaga. Morre porque acabou o querosene. Aí vem uma nova geração que não vê mais sentido naquilo”.

Do fundo do coração

Para Adriana, “o tempo passou e todos viram que essa estúpida briga só trazia sofrimento para as famílias”.

Ela decidiu dar a sua versão sobre a trágica história envolvendo as famílias de seu pai e de sua mãe basicamente por três motivos.

Primeiro, porque se trata de um conflito familiar e histórico de grande repercussão, que ocupa lugar no imaginário coletivo de várias formas.

Segundo, ela conhece essa história de ódio e amor por dentro, e do que não sabia foi atrás, em suas pesquisas exaustivas.

Terceiro, é que, com a exposição dos fatos, sustentados em farta documentação, busca desmistificar o foco sensacionalista dado ao episódio até aqui.

A autora mostra que o conflito começou em consequência de amores proibidos, não por causa de interesses políticos.

Aristides Sampaio, filho do coronel Romãozinho Sampaio, tio legítimo de sua mãe, envolveu-se amorosamente com Maria, casada com Alexandre, primo de seu pai.

Adriana traz um depoimento sobre as circunstâncias do primeiro crime e de muitos outros da série.

No entanto, não acusa, não julga. Escreve com as tintas da dor e da saudade, mas sua palavra é sempre a da concórdia e seu esforço é o de compreender e perdoar os que se envolveram nos violentos crimes que se sucederam desde 1949 até 1981.

Na sua avaliação, as viúvas de maridos assassinados, como sua mãe, tiveram um papel decisivo no fim do conflito.

Elas puseram os filhos para estudar e os educaram para a não violência.

Com isso, ajudaram a escrever uma nova história para suas famílias, como Adriana está contando a dela.

Romeu e Julieta do Sertão

A ponta de mágoa que guarda é da imprensa, que, em seu juízo, fomentou, de forma inconsequente, a continuidade da briga, do derramamento de sangue e da semeadura do luto.

Na comparação de Luiz Gonzaga, Zito Alencar e Teresina Sampaio, personagens centrais da história de “Amor sem tréguas”, encarnam, com as devidas variações de tempo, espaço e enredo, um Romeu e uma Julieta dessa tragédia sertaneja que mostra, ao seu final, o amor vencendo o ódio.

É um livro que deve ser lido por todos, e indispensável, especialmente, para os que se interessam pelo Nordeste, seus códigos de honra e sua evolução.

3 Comments

  1. Edson Moura Sampaio Melo disse:

    Interessante síntese de crimes e romances no sertão pernambucano! Parabéns aos autores da iniciativa!

  2. Gisleno Feitosa disse:

    Esplêndido. Com 73 anos e não sabia de quede nada disso. Vou ler o livro da Drª Adriana. Interessante!!!

  3. Jose Maria vasconcelos disse:

    PARABÉNS, ZOZIMO, PELO OPORTUNO ARTIGO, Q MUITO ME INTERESSOU.

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