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Que país é este?

Reprodução de Arte sobre fotos Alepi e Marcos Santos/USP Imagens

Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus, 
Se eu deliro… ou se é verdade 
Tanto horror perante os céus?!… 

(Castro Alves, ‘O Navio Negreiro’, 1870)

Os versos de Castro Alves foram invocados na sessão de ontem (19/06) da Academia Piauiense de Letras pelo professor Jonathas Nunes em uma análise não sobre literatura, mas sobre política.

O acadêmico citou os versos do poeta baiano ao final de uma reflexão sobre o atual cenário político brasileiro, ao prever para os próximos dez meses o agravamento da instabilidade política ora reinante no país.

Intelectual oriundo das ciências exatas, doutor em Física Nucelar, Jonathas é, entretanto, estudioso tanto de literatura quanto da política, especialmente da questão militar.

Além de ter exercido o mandato de deputado federal e cargos públicos relevantes, como o de reitor da UESPI, já escreveu, inclusive, um livro referencial sobre política.

Trata-se de “1964: DNA da Conspiração”, lançado em 2012, com duas edições, obra indispensável para quem pretende conhecer mais e compreender melhor um dos períodos mais atribulados da história recente do país.

Sucessão de crises

As apreensões do professor Jonathas não são infundadas. A história da República brasileira é a história de uma sucessão de crises.

A própria República já nasceu de um golpe, em 1889. O marechal Deodoro, operador da queda do império, por ironia do destino, tornou-se o primeiro presidente da República e também o primeiro a cair antes do término do mandato.

Daí para frente, até os dias de hoje, o que não faltou foi crise na penosa caminhada do país. Cito de memória apenas as vividas pelos presidentes mais conhecidos.

Um tiro na história

Getúlio Vargas se viu obrigado a meter uma bala no coração, em agosto de 1954. Isso depois de chegar ao poder através de um golpe, em 1930, e implantar, em 1937, através de outro golpe político, a mais cruenta ditadura brasileira, chamada de Estado Novo.

Ele foi derrubado em 1945 e voltou ao poder nos braços do povo, em 1950, mas não concluiu o mandato.

Com crise para todos os lados, se viu obrigado a dar um salto trágico na história, atirando no coração, e a caminhar para a eternidade.

Juscelino Kubitschek, outro presidente do período, tirou o seu mandato a duras penas, pois enfrentou um combate sem trégua dos adversários iniciado já antes de sua posse.

O seu sucessor, Jânio Quadros, um furacão nas urnas de 1960, não durou mais que sete meses na presidência.

O vice João Goulart sentou na cadeira presidencial, mas com as asas aparadas, com a implantação do parlamentarismo e a eterna vigilância dos militares.

Ele derrubou o parlamentarismo em um plebiscito, porém caiu em seguida, quando os militares tomaram o poder de suas mãos, em 1964, e passaram a governar com a força das armas.

Contratempos da era militar

Nem os militares, que se apresentavam como unidos e coesos, governaram em clima de estabilidade, em seus longos 21 anos de poder.

Eles enfrentaram externamente as guerrilhas urbanas e rurais e, internamente, as próprias ambições da farda.

O presidente Geisel teve que demitir às pressas o ministro do Exército, general Sylvio Frota, que estava tramando contra o regime para endurecer a ditadura.

O último general presidente, João Figueiredo, comprometido com a abertura política, viu que os ventos camaradas sopravam contra, dia e noite.

Assim, teve seu governo bombardeado pela extrema direita fardada, com ataques terroristas como os praticados na sede da OAB e no Riocentro.

Crises na democracia

Depois do regime militar, não faltou crise. Tancredo Neves, o primeiro presidente civil, foi operado às vésperas da posse e não subiu a rampa do Planalto.

Sarney assumiu o poder acuado. Tentaram a todo custo cortar o pescoço dele. Não conseguiram, mas na Constituinte amputaram um ano de seu mandato.

Fernando Collor, o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois de 64, mal esquentou a cadeira e sofreu impeachment.

Itamar Franco só conseguiu completar o período porque foi visto como transitório. Mesmo assim, teve que fazer muito malabarismo político para se sustentar.

Fernando Henrique Cardoso tirou os quatro anos de seu mandato ouvindo diariamente a voz rouca das ruas: “Fora FHC! ”

Ele enfrentou o barulho com uma vacina cavalar, a reeleição, mãe de todas as desgraças políticas que se seguiram na vida do país.

Onda vermelha

Lula veio em seguida, na onda vermelha. Esteve cai não cai, na roubalheira do mensalão, em 2005. Deu a volta por cima, conseguiu um novo mandato e fez a sucessora.

Dilma Rousseff, um poste político, foi eleita por Lula e conseguiu a reeleição, mas teve o segundo mandato surrupiado pelo impeachment.

Michel Temer sentou na cadeira dela e escapou milagrosamente, pois tentaram cassar seu mandato até a última hora.

E tudo isso deu em Jair Bolsonaro, um Jânio Quadros piorado, mas sem vocação para renúncia e com aguçado espírito de beligerância.

Ele dispõe de um formidável exército de inocentes úteis e inúteis, marchando ao seu lado contra um fantasma político de carne e osso.

Delírio ou verdade?

Então, em um país que não tem um projeto de nação; em que a democracia é colocada à prova a toda hora; em que o saque aos cofres públicos virou regra, ante as vistas grossas de todos; em que os vencidos não aceitam a derrota; em que os Poderes invadem impunemente as esferas institucionais uns dos outros; em que um presidente anoitece e não amanhece, ou que, quando não sofre, aplica um golpe; e em que, por último, um vírus mortal se transforma em instrumento de disputa eleitoral, as cenas dos próximos capítulos são aguardadas sempre com muita expectativa.

Daí se compreender a apreensão do professor Jonathas Nunes, expressa através dos versos dramáticos de Castro Alves, compostos para um outro contexto grave do Brasil, há 150 anos, mas que atravessaram os tempos e podem exprimir perfeitamente a inquietação e o horror dos nossos dias.

1 Comment

  1. Daiane Rufino disse:

    Excelente análise imortal! Embora considero que Dilma, apesar de ter sido eleita como sombra de Lula, fez-se autonoma, de Lula e do Congresso, tanto que foi cassada.

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