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A linguagem torta de “Torto Arado”

Capa do romance "Torto Arado"/Imagem: Reprodução

Pois é! Como na canção de Ataulfo Alves, “falaram tanto que a morena foi embora”. A morena, no caso, é o romance “Torto Arado”, do geógrafo e escritor Itamar Vieira Júnior. Mas não foi embora de casa, como na letra da música. Foi embora do anonimato para o sucesso, o estrondoso sucesso editorial como o grande destaque da literatura nacional em 2020.

O livro simplesmente abocanhou os mais cobiçados prêmios literários de língua portuguesa. Foi o vencedor dos Prêmios Leya (2018), em Portugal, e Oceanos e Jabuti, no Brasil, estes dois últimos em 2020. Inicialmente, foi publicado em Portugal pela Ed. LeYa e saiu no Brasil pela editora Todavia.  

Além disso, na internet a obra é uma febre. Os que apreciam livro badalado não falam de outra coisa.

O romance vem conquistando o público porque, em uma trama muito bem articulada, na qual expõe as desigualdades, as injustiças e a violência ainda vividas nos grotões do Brasil pelos descendentes de escravos, dá voz aos excluídos e, dentre estes, à mulher.

Em resumo, a história se passa no sertão baiano. Duas irmãs, Bibiana e Belonísia, ainda crianças, acham uma misteriosa faca de sua avó Donana. A arma encontrava-se escondida e enrolada em um pano dentro de uma velha mala, debaixo da cama.

Com aquela curiosidade infantil, as duas crianças colocam a faca na boca. Uma delas, em um golpe acidental, perde a língua. E assim, com essa faca amolada, é disparado o gatilho da história das protagonistas da obra.

Ao largo da crítica

Um adendo: não sou crítico literário. Quando iniciei o curso de Letras, em 1999, imaginava que esse seria o meu caminho. Logo descobri, porém, que o que me atraía no curso era a linguística, sobretudo a análise do discurso e a sociolinguística.

Então, as breves reflexões que trago a seguir sobre “Torto Arado” devem ser situadas no plano das impressões de leitura, apenas.

Pecado capital

Ao meu ver, no que pese a narrativa bem construída e os bons momentos de literatura, o livro tem um pecado original de linguagem. Se literatura é linguagem, é uma falha inegociável, especialmente para uma obra já elevada ao patamar de clássico por muitos leitores.

No romance, as narradoras, nascidas e criadas no ambiente rural, contam suas histórias através de um vocabulário rebuscado, acadêmico, totalmente incompatível com a sua condição sociocultural.

Tenho em mãos a 12ª. reimpressão da obra, de 2021. Marquei aleatoriamente algumas passagens.

Já na abertura do primeiro capítulo, na página 13, Bibiana, narrador-protagonista, traz esta fala: “Aproveitávamos as palhas que já amarelavam para vestir feito roupas nos sabugos”.

E segue:

– “Quanto mais chorávamos abraçadas, querendo pedir desculpas, mais ficava difícil saber quem tinha perdido a língua”. (p.17)

 – “Mesmo assim, minha mãe pedia que a acompanhássemos, que vigiássemos para que não lhe sucedesse nenhum acidente” (p.28)

– “Se era brincadeira de jarê, ficávamos acordados até a madrugada correndo pelo terreiro, contado histórias e rindo alto” (p.43)

Nem com Paulo Freire

Quando iniciei a leitura, fiquei aguardando que ao longo do texto houvesse uma explicação sobre o nível da linguagem das personagens supostamente rústicas, despossuídas, criadas em ambiente atrasado, sem escola, sendo instruídas por uma professora que mal sabia para ela.

Mas o repertório vocabular das personagens não muda. Não há Paulo Freire no mundo que consiga isso. Pelo contrário, vai se reproduzindo e se afirmando ao longo das 262 páginas do romance.

Lá pela página 45, Santa, outra personagem do meio rural, reclama dos donos da terra: “Que usura! Eles já ficaram com o dinheiro da colheita do arroz e da cana”.

Bibiana com a palavra outra vez:

– “Na primeira vez em que minha mãe enviava recado a uma ou a outra, como sempre fizera, nos esquivávamos, e Domingas assumia a função de replicar a informação. (p.49)

– “O rio estava com forte correnteza e minha mãe nos levou para uma pequena lagoa, tributária das águas do Santo Antônio. (p.49)

O texto segue com expressões e termos que não cabem na boca de personagens semiletrados: “dores lancinantes”, “remissão”, “pele erodida pelo sol; “aquiesceu”, “interdito”, “hiato”, “brandia os instrumentos com força”, “sem folhas farfalhando”, “Severo agia da mesma forma na trama em que estávamos enredados”, “esgarçados”, “era jaca mole e eu regurgitava tentando engolir”…

Calcanhar de Aquiles

Bem, ainda que tenham consciência crítica sobre a realidade que as cercam, como o autor faz crer, as personagens criadas por Itamar Vieira Júnior não seriam capazes de expressar isso na forma como está em seu livro.

O escritor Yuval Harari alerta, em “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade” (2014): “Contar histórias eficazes não é fácil. A dificuldade está não em contar a história, mas em convencer todos os demais a acreditarem nela”.

Então, para mim, essa incongruência de linguagem é o que vejo como o calcanhar de Aquiles de “Torto Arado”. É o que tira o brilho do livro, pois passa por cima de um dos elementos essenciais da linguagem literária – a verossimilhança.

Trago esta comparação entre dois políticos de nosso tempo para ilustrar este argumento: não ponho em dúvida, por exemplo, que o ex-presidente Lula conheça mais o Brasil profundo do que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Mas ele não me convenceria se se expressasse sobre as mazelas e riquezas desse Brasil bruto com as palavras do cotidiano de FCH, peneradas na academia.

Outros artistas da palavra que se tornaram efetivamente clássicos buscaram o repertório vocabular condizente com seus personagens para dar verossimilhança às suas falas.

Itamar Vieira Júnior ou se descuidou disso ou, depois de cortar a língua de uma das personagens, tentou compensá-la com uma fala que não é dela, mas do universo vocabular erudito do autor.

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