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“A Divisa”, o romance – divisor de águas

Capa do romance "A Divisa"/Imagem: reprodução

Na década de 1960, depois de muita luta, muito estica e puxa e também muito blá, blá, blá, enfiaram uma gigantesca hidrelétrica na garganta do rio Parnaíba.

Com a Usina de Boa Esperança, inaugurada oficialmente em 1970, finalmente o Piauí iria nadar a braçadas rumo ao desenvolvimento.  

Esta foi a história que ficou e a que todos conhecemos. Ponto!

A história completa de Boa Esperança só está sendo contada agora, 50 anos depois, no romance “A Divisa”, do professor, escritor e acadêmico Pedro S. Ribeiro, filho da região.

Ele se mudou para Brasília antes da conclusão da represa, porém jamais se desligou de sua terra, fonte de toda a sua literatura.

“A Divisa” foi publicado pela Academia Piauiense de Letras, como volume 60 da Coleção Centenário, e vem circulando sem alarde, passeando por pouquíssimas mãos, quase como que pedindo licença.

A angústia maior de quem gosta de ler é não dar conta das leituras que gostaria de fazer.

Assim, somente na semana passada peguei o novo livro do mestre Pedro S. Ribeiro para ler. E só consegui fechar o volume quando li a última linha de suas 252 páginas.

Já conhecia, através da leitura de obras precedentes, a sua grande capacidade de contador de histórias, exaltada inclusive pelo poeta H. Dobal.

“Vento Geral” (1982) é seu romance de estreia, e foi chamado pelo professor M. Paulo Nunes, mestre dos críticos, de “Os 100 anos de solidão de Pedro da Silva Ribeiro”, numa alusão à obra-prima de Gabriel García Marquez.

Confesso, no entanto, que “A Divisa” me impressionou de forma marcante.

Piauí profundo

O livro é um mergulho profundo nas águas do Parnaíba, retratado naquele trecho onde foi construída a hidrelétrica, mas é também – e principalmente – uma viagem guiada pelo Piauí profundo, sobretudo, pelos seus grotões.

O pano de fundo é, naturalmente, a construção da Hidrelétrica de Boa Esperança, cuja represa tragou duas cidades – Guadalupe, no Piauí, e Nova Iorque, no Maranhão.

A usina representa, inegavelmente, um grande salto no desenvolvimento estadual, mas, paradoxalmente, foi também o tiro de misericórdia na navegação do Parnaíba.

Até hoje suas eclusas não foram concluídas. E ninguém cobra mais isso!

Impactos

O leitor é posto em contato direto com os impactos causados pela obra, sejam eles os ambientais, os políticos, os econômicos, os sociais ou os culturais.

Imagine uma cidadezinha de mil habitantes, perdida nos sertões, afogada de repente, do dia para a noite!

Para substituí-la, a construção de outra cidade, às pressas, em ritmo frenético, que logo foi ocupada por dez mil pessoas, entre as quais vagava uma legião de mendigos!

Peripécias 

O livro mostra, sem retoques e com grande maestria literária, as safadezas da política, as sem-vergonhices e a hipocrisia da sociedade local, com relatos de peripécias que deixariam Dias Gomes, Jorge Amado e Nelson Rodrigues de queixo caído.

Na construção de sua obra, o autor, um estilista de mão cheia, valoriza eloquentemente o diálogo, usado com uma habilidade impressionante.

As vozes dos personagens saltam aos ouvidos do leitor, da mesma forma que os sussurros, os gemidos e urros de prazer pelas camas adúlteras e o ronco do jipe que transporta o prefeito.

Silêncio mesmo só o da passarada, que sumiu com a barragem.

Poder paralelo

A Companhia Hidrelétrica de Boa Esperança (Cohebe), responsável pela construção da obra, figura como mais que um poder paralelo.

É o próprio poder, que se agiganta com a transformação de Guadalupe em Área de Segurança Nacional.

Os mandões locais se sentem peixes fora d’água com a construção da barragem.

Na surdina, se preparam para dar o bote emancipando dois municípios que lhes vão recompor os votos perdidos em Guadalupe, com o fim da eleição para prefeito.

A linha divisória dos novos municípios passa na porta da fazenda do principal chefe político local, daí o título da obra, explorado magnificamente ao longo de toda a trama.

Lição que fica

O romance chega como um divisor de águas: a partir de agora, a história de Boa Esperança será contada em dois tempos: antes e depois de “A Divisa”.

Aprendi mais sobre o Piauí com a ficção de Pedro S. Ribeiro do que com os relatórios oficiais que, por dever de ofício, li e reli ao longo das últimas décadas.

Escrevo sem medo de errar: “A Divisa” é um livro fadado a transpor seu espaço territorial e a se projetar para muito além como um documento vivo, humano e pungente de uma época que anunciou a redenção econômica do Piauí, sempre adiada.

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